1.24.2007

Adeus a Ryszard Kapuscinsky


Levou tempo até que eu conseguisse pronunciar o seu nome, sem nunca saber ao certo se o dizia corretamente. Mais tempo ainda para conseguir escrevê-lo com as consoantes nos lugares certos.

Foi na primavera de 2002, em Lisboa, que me veio parar às mãos um seu livro: Ébano. Vinha com uma tarja vermelha envolvendo a capa, indicando um Prêmio e uma vendagem espetacular.

Ao ler as primeiras páginas, percebi que se tratava de outra coisa, diferente do que eu até então havia lido sobre o continente africano escrito por um europeu.

Lembro-me ainda da emoção que senti ao acompanhar o relato dos primeiros dias que se sucederam a independência do Ghana. Kapuscinsky deixou transbordar toda a esperança que tomava conta, não dos ganenses, mas de todos os africanos, que ainda acreditavam em seus líderes, no poder de sua gente se auto-governar, na capacidade de amor ao próximo.

Ébano é um bom livro, embora haja quem diga que tem ali umespírito de colonizador”, de quem chega para ditar verdades. Não o vejo assim. Considero-o um excelente livro para quem quer se aventurar pelos sinuosos caminhos da história do continente africano. A mim, o tom de Kapuscinsky parece algo entre o paternalismo e o aventurismo – não raras vezes, ele descreve os africanos com ar por demais infantil, e outras tantas relata acontecimentos tão fantásticos que não é difícil imaginá-lo em roupas “à la Indiana Jones”.

Mas há ainda o seu “1975. Último dia de vida em Angola”, que, até hoje, tem sido uma unanimidade entre os que estudam os dias que antecederam a independência de Angola, proclamada em Luanda. É óbvio que não tenho memória daqueles dias quentes de outubro e novembro de 1975 em Luanda, mas é como se a tivesse: penso no vento zunindo pelas ruas, arrastando caixas de papelão, casas trancadas esperando um regresso incerto, bairros-fantasma. E depois, cubanos surgindo como que encantados, falta água (começou cedo!), a rádio noticiando as boas-novas do MPLA, embora o clima geral fosse de indefinição e alerta.

Para não falar da viagem do jornalista polaco ao sul de Angola, e das páginas que deixou sobre as primeiras batalhas travadas contra o exército sul-africano naquelas paragens, e do comandante Farrusco, que servindo o exército português aliou-se ao MPLA, e orquestrou lindamente aquelas batalhas, com os poucos mais de 100 homens de que dispunha.

Claro que Kapuscinsky é muito mais do que isso. Ele é todos os percursos que trilhou, e mais todos aqueles que trilharam cada um de seus percursos.

1.16.2007

Paulo Flores e a música angolana

Depois de muito tempo, talvez dois anos, ouvi outra vez o disco ao vivo de Paulo Flores, músico angolano, que foi gravado a 5, 6 e 7 de maio de 2004, no Cine Teatro Karl Marx, em Luanda, Angola.

Por motivos absolutamente pessoais, olhava o disco na pilha de Cd’s e sentia receio das emoções que ele poderia me causar. Hoje descobri que posso ouvi-lo, as feridas cicatrizaram.

E o disco é bom, “é muita bom”, como se diz em Angola. Me diverti muito com o refrão de Garina: Meu nome é Maria, como é o seu? Eu moro na Ilha, na casa do Tadeu”.

Depois, me emcionei, como sempre acontece, ao ouvir Paulo Flores interpretar Belina, de Arthur Nunes, em quimbundo, como no original: “Belina Tua Kifikideto/ Um Tuala Muené/ O Nguma ge Kukala Kia Kumuxima”.

Arthur Nunes, um dos grandes compositores angolanos, foi morto depois de ser acusado de envolvimento na tentativa de golpe de Estado conduzida por Nito Alves, a 27 de maio de 1977. Um dos talvez 45.000 mortos que o contra-golpe fez.

E a influência brasileira, ou até latino-americana, se faz sentir em Menino Destino: “Dá-me da tua mão o meu destino, faz-me o tempo chegar correndo a passo/ traz-me no teu abraço o reconforto, bicho solto”, com um quê de Clube de Esquina... Para não falar do violoncelo de Jaques Morelenbaum, e do lindo ensaio de voz em tom gospel de Dodô Miranda.

Por último, Tito Paris em Falso Testemunho, com a sua voz (e o seu assovio!) inconfundível. E me fez lembrar do primeiro dia em que pisei em Luanda. A 8 de setembro de 2003, tive o privilégio de comer uma cachupa feita por Tito Paris, acompanhada de lições de criolo. Me lembro dele dizer, em tom quase maroto: “se souberes que bó é você, e nha é meu/minha, podes falar criolo”. em Clarice: Mesmo que bó tá longe, bó tá perto/ Cretcheu ó luz di nha vida. Quanta bondade do Tito!

Nada como estar bem com o passado, e poder desfrutar dessas coisas da Angola que tanta falta me faz.

1.05.2007

Os finais felizes nos constrangem

dez anos atrás quando ia ao cinema, saía sempre com a sensação de que tudo o que via nas telas era possível de ser vivido. Subia a Augusta, saindo do Espaço Unibanco (antigo e sempre reduto de amantes paulistanos do cinema) em direção a Paulista, esperando ser arrebatada por algum moço que se descobriu apaixonado por mim numa cruzada de olhares; ou que o orelhão tocasse, eu atendesse e toda a minha vida mudasse a partir daquela ação e suas consequências; ou ainda descobrir que tinha algum poder extrasensorial que me permitisse fazer coisas que até então não poderia.

A realidade e o tempo nos vão levando essas ilusões, mas trazem a tranquilidade da lucidez. É igualmente bom subir a Augusta com a “mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”, sem esperar arroubos de paixão ou grandes e decisivos acontecimentos.

Hoje fomos, eu e um amigo, assitir a um filme romântico, na Avenida Paulista, numa sessão ao meio do dia, cheia de velhinhas aposentadas – como diria esse amigo, estávamos em momento de vingança do sistema capitalista: enquanto todos trabalham, nós vamos ao cinema!

O filme Um Bom Ano, com direção de Ridley Scott e atuação de Russell Crowe, tem todos os elementos de comédia romântica: mocinhos, bandidos, amores que parecem impossíveis, um velho bonachão e simpático, boa música, linda fotografia. Mas como estamos habituados a sermos surpreendidos sempreporque as coisas simples estão fora de moda -, passamos todo o filme pensando que algo terrível ia acontecer, que algum personagem mentia, dissimulava, e o fim seria trágico.

Não foi. Deu tudo certo: fomos surpeendidos por um final feliz. Ficamos quase desconcertados, sem coragem para admitir que era um bom filme e que fazia pensar, afinal finais felizes constrangem...

não é o caso de pensar em jogar tudo para cima, e sair em busca de um grande amor e uma vida pacata no campo, mas faz refletir sobre as prioridades que nos impomos, e qual o sentido que elas têm.

Me lembrei de Antonin Artaud: “O cinema é como uma dose de morfina subcutânea”. Não precisa ser endovenoso, mas podemos sonhar com finais felizes!

1.01.2007

Os anos ímpares

Desde pequena ouvi dizer, da boca da minha sábia bisavó, que são melhores os anos ímpares. Não sei de onde veio a crença, mas começo a acreditar nela.

Comecei a pensar em alguns anos importantes, na tentativa de “logicizar” a minha mais recente superstição: 1789, 1889, 1917, 1919, 1939, 1945, 1977, 1989, 2001... está bem, concordo que talvez haja o mesmo número de anos pares e ímpares importantes, e que isso seja um exercício anacrônico.

Mas eu nasci em 1977 – e isso é importante, ao menos para mim (e para a minha mãe e o meu pai). Este ano farei 30 anos, o que fará de mim mais uma autêntica, e felicíssima, balzaquiana!

Para além disso, o ano termina em 7: Ogum na numerologia. Ogum é o arquétipo do guerreiro, associado à luta e à conquista. É muito mais paixão do que razão: aos amigos, tudo, inclusive o doloroso perdão: aos inimigos, a cólera mais implacável, a sanha destruidora mais forte.

Graças ao sincretismo, Ogum é também Santo Antônio, o meu santo eleito - e não por ser casamenteiro, mas por ser bem bem-humorado e suportar as maiores humilhações de cabeça erguida! Mesmo que esteja de cabeça-para-baixo dentro da farinheira...

Quem acredita????

Sustenta a gira Ogum
Não deixa a demanda entrar
É
hora, é hora, é hora Ogum
É
hora de trabalhar

Feliz 2007!!!! (e, por via das dúvidas, abusemos do verde e vermelho, as cores dos santos do ano)